A partir de algumas das canções utilizadas no filme Ainda Estou Aqui (Walter Salles, Brasil, 2024), oferecemos um olhar sobre a música ouvida no Brasil durante os “anos de chumbo” da ditadura militar de 1964-1985. O período, que se inicia com a decretação do Ato Institucional n. 5 (dezembro de 1968), e vai até 1974, foi o de maior repressão e brutalidade do regime. No campo da música popular, tivemos o exílio e mesmo a prisão de diversos artistas, com a censura inviabilizando a continuidade de carreiras e movimentos musicais.
Paralelamente à repressão, o governo desenvolveu amplas campanhas publicitárias que, embaladas por um forte discurso ufanista, exaltavam o acelerado desenvolvimento econômico do período – resultado do endividamento externo e dos investimentos de grandes empresas internacionais no país (Fausto, 1995). Como consequência desse cenário, tivemos a rápida consolidação de uma indústria de bens simbólicos no país (Ortiz, 1989) e, também, a crescente presença de produções culturais estrangeiras, especialmente estadunidenses.
As músicas selecionadas – gravadas, com uma única exceção, entre 1970 e 1972 – permitem uma visão abrangente das formas de resistência ainda possíveis naquele momento. Canções de cunho mais político tendiam a adotar uma “linguagem da fresta” (Vasconcelos, 1977), na qual as críticas se expressavam através de metáforas e jogos de palavras, na tentativa de burlar a censura. Ou, ainda, utilizavam-se da ironia para expor os paradoxais contrastes entre modernidade e atraso – que se tornariam marcantes no país a partir do (conservador) modelo de desenvolvimento econômico adotado.
Algumas obras demonstram o esforço de resistência da música popular tradicional diante da crescente influência da música estrangeira e do rápido avanço da cultura de mercado. Já outras, estabelecem interessantes interações com o cenário global, chegando a se constituir, em ao menos dois casos, como os primeiros movimentos de uma “black music” brasileira.